segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Comendo com colher de sopa

Fico impressionada com as inúmeras retrospectivas que li nesses últimos dias. Infelizmente minha memória não é das melhores e minhas lembranças são uma bagunça, tenho uma profunda birra com datas que reflete-se na minha total incapacidade de situar-me no tempo. Tentei escrever algumas lembranças desse ano, mas elas estão bem onde estão. Então vamos a minha missão:

Lucas, Naim
Hilda Hilst

Tento recordar, reconsidero eu corpo palavra, um ramalhete cerdoso aqui por dentro, eu corpo palavra, sangue emoção sufixo, coisas que fazem parte do corpo da palavra, reconsidero um ajustar-me ao todo e a tudo, não tinha esta cara, eu Lucas tinha outra, corpo e palavra se refazem, tu não és mais o mesmo, tu Lucas, as palavras também adquiriram surpreendentes significados, por exemplo velhice era coisa de longe, de vazio, aderência de outro não de mim, bochechas magras, franzimentos, um acorpar-se de névoa e de suspiros, velhice Lucas, reconsidero a cara e tudo o mais diantes do espelho, sou eu Lucas ainda, meio amarelo, e neste instante acorrentado à loba, dizer isso acorrentado à loba velho úmido pastoso, lobapaixão colada a mim, estamos pensando, é isso, pensar não parecia tão difícil, costumava pensar com propriedade, dissertava depois, discursava até, aos poucos chegava a singulares conclusões, eu Lucas modelo intemporal tem presente nem passado, posso ser este e outro, posso não ter sido e ser sempre, ainda complexidades, mas há modelos que se expressam com muito mais trançados do que eu: "o indivíduo tem uma extensão considerável no tempo e negligenciável no espaço". Isso disseram. Costumava pensar sobre esta frase, desfiava esquema emparedava corolários, pensaca, tentando chegar ao primeiro degrau indivíduo, o que é um indivíduo? Compacto, eu mesmo, Lucas, indivíduo. Se eu colocasse diante dele, de Naim, soberbo, grave, mudo, quase sempre, me olhando. Hoje devo dizer a ele desse impermissivo agudo intolerável aqui por dentro, ajustar a seus olhos paixão e velhice, pontiagudos opostos, duas lentes, uma vermelha lustrosa alongada e brilhante, inchando o mundo, sereia, magenta à tua volta, me tocas e toda pacidade do mundo pe orata e passível de idéia, posso reformular unha e falange, pêlos e pobrezas, voltar a ser esplêndido-humano, único, aquele pensando pela primeira cabeça, duas lentes Naim, da segunda falo menos, ou não? Penso baço menos, ou não? Estendo-me ainda no vermelho, tingido, escorrendo. Da segunda, dessa cinza parda, distância que agora se faz colada a mim, sei e não sei espessura da lente, algumas manhãs lente baça e grata, estão ali as coisas? As gentes? Há livros por aqui? O senhor me conhece? Sua filha? Ah perdão, sua mãe é? Antes não havia ali uma praça? Pequenos desconforto, riso cascateado por dentro, estou bem muito bem, que me importa as filhas, praças, livros agora se já estou dentro deles, coisa que já sou, gente que fui, ah isso Naim, fui gente, como tu mesmo, esticado longe, um nariz que cheirava muito à sua frente, um belo nariz muitíssimo delicado, e boca cheia de dentes e olhos que sabiam de Lucas, já sabiam desse Lucas de agora, e uma garganta que se fosse a mesma te diria: te amo como as begônias tarântulas amam seus congêneres, como as serpentes se amam enroscadas letras, algumas muito verdes outras escuras, a crus na testa lerdas prenhes, dessa agudez que me rodeia, te amo ainda que isso te fulmine ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade, diria garganta espaçosa e viril, avalanche de sopros, santas palavras, Naim. Eu fosco nesse instante escolhendo algumas, palavra-semente sobre a mesa, muitas, pondo de lado esta extrema redondez, paixão, perfeição evidente mas chocantes, paixão esta de lado, eu dentro dela mas me verás ao largo, digo tocando as órbitas cerradas
alguma coisa em mim, deseja alguma coisa que não sei
Vai até a janela ereto, lento, não deveria ir porque o trançado desta frase não é o mesmo trançado de outra rede, eu não disse: Naim, "o indivíduo tem uma extensão considerável no tempo e negligenciável no espaço", nem disse "Apes vos nom vobis mellificatis", que quer dizer, Naim: o mel que vós produzireis, abelhas, não será para vós, e talvez fosse adequado incorporar Virgílio no nosso diálogo, homem-abelha-Naim existindo porque Lucas existe, mel porque para mim, ninguém mais te verá armadilha dourada tão precisa, tão bem colocada, porque sou eu quem te vê e ninguém mais-eu, não outro tão eu como eu mesmo, meu corpo, coeso com as coisas oi não, este tempo seria o de reflexão, de morte também, porque ainda que eu não esteja totalmente morto, estou à morte há muitos anos, desde que resolvi olhar o que existia além, o descarnado de mim, ir lá adiante onde os outros paralisados aqui, suspeitam apenas que há um pavoroso mais adiante, e indo mais adiante a pegunta inflou poderosa: há Deus na morte? Aquele que é o Novo Substancial Vida Primeira em Si Mesma, contém em Si a morte? Pergunto-me isso e estou substancialmente morto, emoções, o fardo do meu corpo se desfaz, não sou eu mais, ou sou mais Lucas, mas não ligado às possíveis gentes, a tudo vivo animal vegetal, e mesmo a pedra no seu corpóreo turbilhonado, turbilhçai que não vemos, está mais próxima daquele todo vida, do que eu. Então como posso estando morto, articular ingenuidades e como quem vai beber água te dizer: acontecu que não imagino mais meu existir sem te ver ao meu lado. Então não digo. Então repenso muitas maneiras de dizer, formas coerentes com o morto que há em mim, repenso mas não encontro, me fazer em palavra, retomar o castigo de cândidas vogais Amo Amo, fingir que não sei o que tu és, o que eu mesmo sou, o que tu és, Naim vinte e cinco, soberbo, grave, mudo quase sempre, me olhando. Soberbo de quê? De aparências, tua cabeça cabelos, soberdo mais eu, que sei de todos os atalhos, grave de quê, Naim? Grave mais eu, que sei como te levar a reais gravidades, em poucas horas posso esmagar em ti soberba e gravidade e te fazer não mais olhar a janela mas saltar por ela. Ato que posso, anulo, pactuo incoerência, digo
umas coisas acontecem e mesmo pensando muito não se sabe a fonte
quê?
a fonte dessas coisas que acontecem
Continua mudo mas voltou-se, breve como quem espia quem vai estrar pela porta, presença insuficiente em importância porque a paisagem de fora continua sendo o que olha, cinza pardo como eu, cara no firmamento, perfil, também olho e digo o que se diz quando há no céu uma cara parece uma cara
é, parece
um duplo perfil olhe
Três caras, tua minha e a cara desse morto que parece estática, cara que possuo, enorme, tomando o perito e o abdômen, morto sem cabeça agora porque desiste de meditar no que já sabe. Se meditasse, o morto Lucas não te tocaria o ombro.
o que foi? Hem, Lucas?
Morto sem cabeça faria melhor te sacudir também pelos ombros, ajoelhar-me, e partindo objeto e suplicante ousar balbucios ou prólogos pequenos, comedidos, ainda ajoelhado reconstruir meu corpo para o teu olho, estender as mãos até a tua cintura e confessar amor vazio de astúcias, ou didático somar vogais e consoantes numa espiral de gelo, Lucas glacial
se você está vendo que é um duplo perfil, está?
sim. Colados.
Hiperdialético construíste um vetor, mas se eu fizer disso uma evidência, se rascunhar para o teu olho cego porque jovem, que tu mesmo, Naim, me levas até o lago onde bóiam estufadas as palavras de amor, negarás intenção e ambiguüidadem disse cikadis duabre di qye se vuam dusse cikadism Kucasm como mil outros diriam diante do que se via, não houve o desconforto de opções e supostos, claro que assim não me dirias, com essa exata arquitetura de palavras, gaguejante, rosado, três murmúrios muito frágeis e depois um agressivo unívoco, então não digo hiperdialético construís um vetor, nem rascunho para ti a linha azulada do caminho que nos levaria ao lago, continuo como se não soubesse do teu fosso de dentes pronto para me triturar, verdade que me queres? Colados, não é, Naim? Perfis colados, mornura carne afim apenas de um só lado, não estão frente a frente, não estamos, não posso mensurar veemência e intensidade de ti mesmo se não nos colocarmos frente a frente, propositada acalmia do teu perfil vago, e ainda espectador recuo para a margem do fosso, depois medroso, medo de que o fundo seja nada
viu, Naim, desmancharam-se agora
hem?
os perfis desmancharam-se
um no outro
Começaste um galope, disseste colados, um no outro, e continuas incoagulável frente à janela, se te vissem de fora, as gentes, não te vêem, último andar desse tão alto, se te vissem de fora diriam talvez, alguém diria, que te pareces a um colecionador de marfins, marfim tu mesmo eu diria se te visse de fora, que és feito de uma carne sem tempo, estás aí e tudo o que dizemos te convence de uma sobrecarga de inefável, mentes para ti mesmo soletrando um recoser de frases. Por que não dizes que também eu estou em ti colado, que estamos um no outro há muitos meses, que te envergonhas de um sentur muito sentiente, juntura que te oarece desabusada? E retomando velhice, pensando eternidade, também eu galopo, por que não morrer? Por que não atravessar o grande rio, ou dele fazer oarte, ser água e basqueiro, mas viva ferida na pretensa austeridade de sempre do teu peito? Porque não morrer, se há muito me sei tão morto porque vivo em ti tão imootente, corrído de prenhez de de desejo, não me envergonho de usar prenhez em mim, virilidade também comporta preciosa redondez, tua alma na minha cabeça, no ventre, teu espírito baço mas amálgama do meu, e tão desejado, não era o que eu pretendia na velhice, amar um outro homem, inarticulado usar a palavra como uma velha espada, corte-cego, sem fio, ferrugem sobra a prata, não, eu não queria, e vou dizê-lo
sabe, Naim, eu não queria
o quê? que os perfis se desmanchasse?
um no outro, eu não queria, que um só se desmanchasse sim, para nitidez do outro
pobre Lucas. Ainda usando geléia de morango nas palavras? Pode comer sozinho essa torrada.
Vamos comê-la juntos. E enquanto me aproximo do teu rosto cinco ou seis passos, o passado explode, jorra dentro da sala por um imenso buraco, revejo teus dissimulados toques, uma lascívia escura, um remendo rugoso inaceitável para a tua brilhosa juventude, remendo rugoso, gozo grosseiro desculpável em ti porque há velhice em mim, e amor na velhice para o teu ser cego é espetáculo imundo e risível, ainda que eu seja honrado, e quase ilustre e fudamentalmente viril, velho-Lucas-viril, sugado para um vórtice de carne, perguntando-se a cada madrugada que luz é que v~e na tua tola e tosca quase adolescência, luz de carne, isso, e um invisível, feito de mim mesmo, sobreponho em ti meus longos resultados, penso que és um, soberbo Naim, bele, mais minhas dores, mais meu estofamento álmico, meu esticado tenso, e uma dupla torção, vida e conhecimento. Te imagino tu-eu. E és apenas vinte e cinco, mas vinte e cinco rasos, de tibiez, camada cremosa e milimétrica de pequeninos neurônios ativados, e para que percevas cominho mais dois passos, Lucas caminha, o outro sorri, mudo, e peça grande janela de onde há pouco se viram dois perfis, uma cara, pela grande janela, águl, Lucas se atira.

Pro GJ. :)